quarta-feira, junho 23, 2010

Eu-legia

Que ninguém chore,
porque parte mansa esta criatura
que foi tão vossa como da água.
Outrora se debatia, revolvia e revolucionava
no seu modo de se rebelar,
mas já há quase uma década que não é assim.

Na sua lembrança tem consciência
de que privou de algumas das maiores felicidades
que o ser perene, temporário, experiencia.

Atravessado pela degeneração fugaz,
este ente apercebe-se, no seu fim,
que na morte não há lugar para arrependimentos:
é como ouviu de certa vez - «todos morremos culpados».

Aos poucos, a necessidade de cultura escasseia-a,
lentamente a solidão é a melhor companheira que se tem.
O que é isto senão a morte?
Pois que continue a descansar em paz.

sexta-feira, junho 18, 2010

O tempo das memórias

O tempo é obsoleto
como os três relógios que disponho numa caixa
para que perdurem como memórias do que já não é.

A dor continua a incomodar-me naquele lugar,
aquela dor que me há-de matar,
tal como o sorriso dela que um dia
ainda há-de ser a minha morte.

A mulher que tinha uma língua de vinagre e que
cada vez que chamava pelo meu nome
a acidez da bílis se me agitava no âmago,
tinha em mim a sua criação mais extrema.

Durante o primeiro dos três relógios
ela se imprimiria em mim
e eu seria muito ela.
Durante o segundo, porém,
já ganha a personalidade, pareceria menos ela,
muito mais eu, mas também os traumas
que começaram por causa dela.

O terceiro relógio chegou. Eu já não sou quase nada
e a olhar para trás vejo o que muito pouco fui
e o nada que apenas restou.