quarta-feira, maio 26, 2010

sem título

Não tenho quem me tire o cotão do umbigo.
Sei que viajaste por nuvens brancas
e voltaste para beber do mesmo rio
mas nunca mais te tive comigo.
Liras de platina soavam ao longe
quando vibravam as águas da memória
através da luz que emanavas.
Ainda assim, permanecia o aglomerado,
lento e enfadonho, do cotão no meu umbigo.
Os mistérios que lobriguei, vestido de cinzas,
foram-se adensando com o passar das nuvens
e o teu semblante, figura alva e altiva,
jamais pude alcançar.
Consigo ver o pormenor da roda dentada,
ou mesmo a espiral do parafuso,
os magros fios metálicos que ligam tudo
nesse mecanismo do tempo ceifado.
Sozinho, continuei à tua espera,
não como quem aguarda por um transporte público,
mas como quem anseia por se transportar sem meio,
flutuar sem ficar sem os seus pés no chão,
correr mais rápido que o som da nossas vozes.
Estirado, de barriga ao alto, meio estremunhado,
passei o dedo indicador na cova do umbigo
e lá estava ele, o cotão aglomerado,
que só posso tirar sozinho.

quinta-feira, maio 20, 2010

A presença da ausência...

Imaginei-te ao pé de mim
provavelmente já mais vezes
do que as que realmente estiveste.
Sei que nem sempre será assim
e na minha mente toda a hora aconteces.
Mas para nós a vida passa célere
e o amor, esse, nunca tem fim;
os dias, no entanto, são morosos
e as noites dão cabo de mim.
As insónias corróem o pensamento
qual ácido sulfúrico nas veias cerebrais,
enquanto sonho com o momento
em que não diremos Adeus não mais.
Ao meu lado, sinto sempre a falta
que me faz a presença do teu corpo
um recorte de uma ausência cálida,
quase física, ou estarei eu já louco?

quarta-feira, maio 19, 2010

Maio, o mês dos imaculados, dos que sofrem de mil e uma maleitas, e no entanto a mãe de todos, Maria, é visitada e adorada, celebrada a sua santidade e relembrado o seu sacrifício - o padecer de toda uma vida concentrado no crucificar do seu filho.

(in Hospital Sta Maria)

domingo, maio 09, 2010

Só a dor é real

Já não sei o que é não sentir dor. Já não me consigo lembrar.
Cravo as unhas na terra e arrasto-me a muito custo, qual verme do húmus. A humidade e o mosto, o bolor de uma vida, espalhados pelo chão fétido. O corpo é vilipendiado, uma e outra vez, como são os caixões pelos ladrões de cadáveres. A dor não tem fim e esquece-se o seu princípio. Os membros e o rosto ardem, quando o nariz dos cães e o rabo das mulheres estão quentes, é porque eles estão com febre. As costas tortas, uma espinha dorsal num invertebrado?, e toda uma vida não-armazenada em casca de caracol. É tal, o fenómeno pirético, que os olhos saem dos seus globos circundados por chamas, aros ardentes, e flamejam as lágrimas antes que elas consigam escapar. A memória, toda, excepto pela mão que segurará a minha no final, esfumaça-se nas altas e crepitantes labaredas da febre. Nada como ser atingido pela amnésia da febre e pela pura inocência da dor, para começara chamar nomes às pessoas e dizer coisas que jamais me imaginei a cogitar. Será que o corpo ardendo passa a ser propriedade do demo?
Uma bactéria fulminante é um agente do diabo, como são os bombistas-suicidas: irradiam e arrasam com tudo à sua volta; todos os pedaços de carne, todos os recantos do corpo em astenia.
Os lábios, mais reais do que nunca, esquentam, dilatam-se de tal modo que me parece que também eles, depois de vociferarem palavras indecorosas, ameaçam em gesto de penitência expirarem-se numa explosão. É o fenecer da alma e o padecer do corpo que me fazem ter neste momento a certeza: só a dor é real.

quinta-feira, maio 06, 2010

A tarte do desejo

A maçã do pecado era uma tarte,
uma tarte de maçã dourada
com um travo a luxúria
muito fel e desengano
foram os sabores da desventura.

A polpa do fruto era a parte
que se fundia na massa deitada,
o resto eram pedaços e penúria
deixados sem causar dano
ao doce polvilhado de amargura.

O pau de canela dá-lhe arte,
para despertar sentidos é condenada,
com essa especiaria polvilhada a fúria
embora quando me engano
sei que o acre dá lugar à doçura.