Já não sei o que é não sentir dor. Já não me consigo lembrar.
Cravo as unhas na terra e arrasto-me a muito custo, qual verme do húmus. A humidade e o mosto, o bolor de uma vida, espalhados pelo chão fétido. O corpo é vilipendiado, uma e outra vez, como são os caixões pelos ladrões de cadáveres. A dor não tem fim e esquece-se o seu princípio. Os membros e o rosto ardem, quando o nariz dos cães e o rabo das mulheres estão quentes, é porque eles estão com febre. As costas tortas, uma espinha dorsal num invertebrado?, e toda uma vida não-armazenada em casca de caracol. É tal, o fenómeno pirético, que os olhos saem dos seus globos circundados por chamas, aros ardentes, e flamejam as lágrimas antes que elas consigam escapar. A memória, toda, excepto pela mão que segurará a minha no final, esfumaça-se nas altas e crepitantes labaredas da febre. Nada como ser atingido pela amnésia da febre e pela pura inocência da dor, para começara chamar nomes às pessoas e dizer coisas que jamais me imaginei a cogitar. Será que o corpo ardendo passa a ser propriedade do demo?
Uma bactéria fulminante é um agente do diabo, como são os bombistas-suicidas: irradiam e arrasam com tudo à sua volta; todos os pedaços de carne, todos os recantos do corpo em astenia.
Os lábios, mais reais do que nunca, esquentam, dilatam-se de tal modo que me parece que também eles, depois de vociferarem palavras indecorosas, ameaçam em gesto de penitência expirarem-se numa explosão. É o fenecer da alma e o padecer do corpo que me fazem ter neste momento a certeza: só a dor é real.
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2 comentários:
lindissimo. e concoro numa coisa only pain is real.beijinho João
Olá João, tudo bem?
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