terça-feira, outubro 27, 2020

poemazito da água

 Preciso fazer as pazes com a água

porque dentro da cabeça o ciclone

não pára

e dentro do peito o tornado 

desfaz tudo

e dos olhos trombas de águas saem

inundando o coração 

afogando-o

sufocando-o

até que a pouca capacidade pulmonar 

seja nenhuma.


Será que a água me perdoa 

e lava todo esse sentimento de dentro de mim? 


Não sei porque o coração ficou tão encardido de ti

São já muitos anos que te quero fora de mim

Mas o tempo não é meu amigo

E a água agora também não.


segunda-feira, outubro 26, 2020

Morreste, minha "mais que mãe"...

 Fico sem saber o que fazer, meio suspensa, congelada

Como se estivesse presa numa teia de aranha feita à minha medida

E pressionada, espalmada,

a barriga no chão comprimida

e ainda com a dor de um soco no estômago

esse âmago da dor.


Vejo-te em todos os objectos que me deste e nos que não foram teus,

em todas as loiças e coisas de vestir,

quebro, grito, mas por mais que não mais me oiças,

não cessa o meu carpir.


Sei que eras a mais dourada das flores

Que te vestias com mil cores

E que contigo não havia tristeza ou dores,

Por isso tento ao máximo levantar-me com destreza,

Mas pensar que faltou muito de beleza

Para juntos os três vivermos

Só me dá raiva da injustiça

Nesta vida que só nos lixa.

sexta-feira, outubro 23, 2020

 Sou céu. Vislumbrei os traços de Anabela; aquele seu manto diáfano do que ela é, do que não é e de quem ela procurava ser. Ontem, quando lhe disse que ela tinha muitas amigas, "é bom, nomeadamente aquelas duas mais próximas, com quem podia falar", ela disse-me "mas tu és especial, é diferente, quando raramente me abro é só mesmo contigo". Pensei logo que me dizia isso só por ser ontem, por eu ter dado mais uma volta ao Sol, mas ela disse que não, que eu sabia como ela era. Sim, sei, sempre soube, pois ela, assim como o irmão dela e outras minhas crianças do coração azul, brincando da Terra verdejante com as minhas nuvens, arco-íris e estrelas do dia, também são pedaços de mim, sempre foram e sempre serão.

 Não há necessidade em perscrutar o miolo do Mundo

Nem tanto buscar incessantemente o seu sentido

Tudo mudou e em constante mutação seguirá

Apenas para permanecer o que sempre foi:

um nada aparentando estar cheio de tudo.

  Os dias têm passado com o céu indiferente à sua seminal dor e ao nosso filial inferno, o que me faz questionar também se o facto de não conseguir sentir o que sente, como se estivesse num limbo, quer reforçar essa desesperadora ideia de que é agora apenas fantasma, sem se poder sentir nem se sentir que já não existe. Nossa amada heroína, mulher mais forte e corajosa, que até a vida conseguiu com a sua nefasta força devastar até mais nada restar e mesmo assim não ter a bênção da morte. É, parece que estamos congelados, nós os dois, filhos amados, à espera de quem já não vem.

 Não te esqueças de te lembrar (é bem simples):

1. Não partir sem segurar uma peónia na concha das tuas mãos, embora sejas alérgica a flores;
2. Não perecer fatalmente sem mergulhar uma última vez no mar e ficar para assistir o pôr-do-sol e depois as estrelas;
3. Não se extinguir antes de recordar que tudo o que querias fazer e dizer do amor por todos disseste.

 Lábios de romã carmim, puro afã de arlequim, símbolo da fertilidade, do amor, da beleza, da sensualidade e da riqueza; quando há vida e sangue, depois do ódio e do corpo exangue, esses grãos dessa imperial orbe cujo sumo luxuriante trago de um só gole; tornando-me imortal num ser que eternamente morre.

 A vida em suspenso, como nuvens espaçadas e vãs, pois também elas são passageiras nesse céu imenso de mar, luz e escuridão. São resquícios de sobreviventes que somos, herdeiros do sangue de quem viveu guerras territoriais, de quem carrega a alma da vitoriosa revolução e da exangue derrota. Por isso, vagueamos ainda na criação, mostrando que a resistência da fênix é cíclica ad aeternum e a inspiração é toda ela a importância em si no Amor e na Luta.

(dps de ter ouvido a live de conversa entre Michael Meyson e Pedro Keiner e de como antecessores são sobreviventes de repressões contra povo índigena e povo judeu; essa identificação de como somos irmãos nisso tb)