segunda-feira, outubro 19, 2009

A memória da persistência

Busco, desde há sete anos, o trilho para chegar até Mariana. Exangue, sigo os seus passos, adivinho-a e oiço os ecos da sua voz que ficou presa nas ondas eléctricas do magnetismo terrestre e que a Mãe-Natureza me devolve, num acto similar ao de um sacerdote que entrega as cinzas de um cadáver acabado de cremar.

Contorna a base do penedo, enorme. As suas estepes são as costas de um gigante, cravejadas de rebentos que se erguem do suave musgo-alcatifa.
Lúcia-lima e dançam mosquitos, hortelã-pimenta que piso e é um bálsamo para os pés cansados da exploração errante.
Beleza selvática que se revela mutante de um mundo paralelo ao do meu familiar campo prazeroso.

Chegando ao planalto, do topo do abismo se avista o lago, reflectindo monstros semelhantes aos borrões de Rorschach; é uma lagoa na cratera do vulcão, ladeada por pequenos monstros de cinza.
Jorrava o verde em todos os seus tons: verde-água, verde-esmeralda, verde-seco, verde-malaquite, verde-palma, verde-absinto, verde-limão, «assim como os olhos do meu coração».

Segredam-me murmúrios de estalactites, como quando o vento serpenteia a costa. Ao longe, as ondas eram orquestradas pelo pensamento de Mariana, num compasso binário, iam : pausa, vinham : percussão. Atlântico, o mar, e de repente um som ténue, depois engrandecido para música com ritmo sincopado, da minha infância o bater dos pauzinhos das rendas de bilros que a minha avó malabarismava. Aquele ritmo ancestral e o olhar da minha avó sobre mim, tecendo esperanças e sorrisos a meu favor. Primorosamente, espuma de bilros em rendas espraiadas pela orla marítima. A memória da persistência. Gotículas aderiram ao interior das minhas narinas. Através da simbiose das moléculas do sincretismo que se apodera de mim, dá-se o equilíbrio dos elementos.
Um nevoeiro amargurado prepara-se para expulsar os pequenos duendes beneméritos e abraçar a noite dos bichos noctívagos. O estoicismo com que as plantas se recolhem, de estames vigorosos e caules hirsutos, de quem perdeu mais uma batalha, mas não a guerra. As folhas, largas e outrora protectoras, falecem no descendente lusco-fusco do horizonte desfocado. Derrama-se a penumbra e as sombras esponjam-se sobre todo o vale. «É de noite a Criação.»
No altar do planalto, com vista para o abismo aquoso, vejo o etéreo corpo de Mariana. Jaz, incólume, como sacrifício recebido pela terra que a abraça com os seus áridos feixes, enrodilhando-a nos membros e no tronco. Nota-se florida na cabeça de Mariana, sobressaindo dos seus cabelos rebeldes, uma coroa de vime seco, pintalgada por pequenas flores de um cinzento-claro, que fazem lembrar o nevoeiro que há-de vir. Não tarda, a voz do silêncio cobre de meditação o frondoso mundo selvático que ficou abaixo do leito de Mariana. Gotejam-se chilreares tímidos..., escasseiam-se... e deixam de existir. Permanece «a serenidade que embala a vista com ternuras tristes». A tua ausência está cravada na negritude da rocha vulcânica, assim como na minha alma. Encontrei-te, finalmente, estiro-me ao teu lado e entrego-me ao húmus. Nem o nevoeiro amargurado e as criaturas da noite conseguem expulsar-te deste lugar, Mariana.

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