O mofo das camisolas amarelecidas que não saem do armário é o mesmo que está impregnado em cada poro da minha pele e em cada lâmina cerebral da memória.
O breu de meses sem sol a extinguir-me a parca existência e quem eu sentia ser. As mortes, todas ao mesmo tempo, quase que a pontapearem-me o corpo como naquela imagem do cadáver de Savimbi, com apenas as moscas como testemunhas.domingo, novembro 29, 2020
segunda-feira, novembro 16, 2020
Casca
Sou, agora, apenas casca de flor de physalis,
a tentar equilibrar-se no vértice pungente do mundo
e sei que é tarefa impossível
e que a única solução para não estar
em permanente sovamento do vento
é deixar-me perfurar por esse punhal pontiguado.
sexta-feira, novembro 13, 2020
Kintsugi de ti
Saber amar-te por dentro dos espaços onde tu não vês beleza
Essas fissuras de escuridão rodeadas de penumbra
E ir como pintor pincelar com tinta dourada
Todas essas rachaduras por onde pode entrar a luz
Isso afinal sempre foi tomar-te a ti
Como meu mais precioso objecto
No qual pratiquei essa arte centenária do Kintsugi.
terça-feira, novembro 10, 2020
Amanhã (Lamentação - Llorona )
Quando eu morrer amanhã
E todo o nada que sou hoje
couber num pote de cinzas,
Meu amor que não me escolheste,
Não jogues flores no mar morto
que foi a minha alma deserta.
Amanhã, meu amor que foste,
quando eu morrer docemente
no mar
não fites as poucas fotografias
nem as ondas que fizemos com o olhar.
Quando eu morrer amanhã,
meu amor que foste,
não toques as palmas das tuas mãos
como lembrança do nosso calor.
E acima de tudo,
meu amor que foste,
Quando eu morrer
não chores
pois "não é possível".
Depois de tudo quase nada?
Queria amar-te despido de ti mesmo,
sem as máscaras atractivas letais
para a honestidade e a genuinidade;
sem a violência de gestos banais,
escolhas que me são sempre cruéis;
...
Mas, no final, o que ficaria de ti?
segunda-feira, novembro 09, 2020
Gabriel
Já ouvia a música com o teu nome
anos antes de sequer ouvir falar de ti;
Nela, eras anjo e eu chorava copiosamente
dentro do carro, apoiada no volante
e, em loop, todas as memórias que perdi.
Um dia, apareceste para mim como se fosses de outra época,
um tal mosqueteiro do amor, saído do romance de Dumas,
e eu feito Séneca, deixei-me arrastar seguindo atrás...
Falas-me de estar entre as nuvens e o chão,
Falas-me de mundos ínfimos num gelado coração
E eu já não sei se és a criança que nunca chegou a viver,
Aquela que era para ser o filho do meu melhor amigo,
Um anjinho que se perdeu...
Faz-me confusão maior no meu cérebro doente
Viver assim agora tão convosco e contente
Pois sei que será mais alguém belo que deixará
Um vazio no meu peito quando ao mundo regressará
Mas sei que tudo é assim fugaz
A lição de que ainda não me convenci
Mas por enquanto tenho a tua voz de paz
Para me aquietar sempre quando não dormi.
(Da InSónia para o amigo Gabriel de Almeida Prado; pq "n há maior prazer do que rever velhos amigos, senão o de fazer um novo" <3 )