domingo, maio 23, 2021

O segundo antes do fim

 O vibrar da corda na harpa do fim
agita todas as gotas de orvalho
que bebemos de nós,
que alimentaram a terra,
que estiveram na origem do amor

Antes de a lâmina deslizar no pulso
a lágrima que não chega a cair 

Antes de o breu fulminar todas as cores

Antes de o ar se acabar 

Tenho na minha alma todos os tons de azul
de um infinito crepúsculo.

sexta-feira, maio 21, 2021

Do silêncio e da solidão a dois.

 Lembrei agora: conheces aquela solidão que só é boa quando estás a poder ter alguém do lado para ser também sozinho contigo?

É desse silêncio que também sinto falta. De te olhar nos olhos e saber que nos pertencemos na serenidade e no tumulto e na tempestade e na bonança. 

Aquele abraço que não só preenche os corpos como nos faz acreditar numa alma una. 

A intimidade que é o calor nos olhos e nas mãos.

A vida não tem testemunhas.

terça-feira, maio 18, 2021

Suficiência

 Espero que um dia nos sintamos suficientes...
E não somos incrivelmente lindos na nossa explosão de caos?
Acho que sim, que somos.
Tanto quanto a nebulosa Olho de Gato, 
Sabes?

Não foi porque ela era manipuladora
e ele era autoritário
que nos vamos menosprezar
sentirmo-nos como o tal batido de morango estragado
que foi trocado
como dizia o nosso Pessoa...

Não, não somos a espuma do mar
Somos as marés inteiras e as ondas
que hão-de sempre chegar.

Do Mar Bramindo...

 Enredaste-me nas tuas ondas
como quem engole a espuma
das marés que vazam

Vens...

és o mar antigo que reencontro
a banhar-me o corpo
e leva-me para mim

Vais...

esvazia-se a alma
esfumaça-se a espuma
e fica só o vazio
como depois da areia absorver a água

Vais-Vens

o rumor que me embala
hipnotiza-me com todo o azul
e tu qual sereio cantas ao luar

segunda-feira, maio 17, 2021

Arame florido - Cantar de desamigo ou desencantar de amigo

 Tenho calor nos olhos
Como se estivesse febril
Mas não estando assim
Sei que são dos molhos
Que não gostas de alecrim
Nem eu tanto de bombril

Nesses teus braços alvos
Bailam todas as pessoas
Mas o teu peito murmura
Apenas pelo meu coração
Sei que não estamos salvos
Que todos os dias nos moas
E de lacónicas palavras urdura
Toda essa nossa contradição.


Ilusão

 Assim como o rio desemboca no mar,
a ilusão termina em desilusão?
Não...
Porque o rio seca antes de lá chegar
ou extravasa e alaga tudo 

Uma vida inteira construída em diques
como se fosse um castor laborioso
sempre exausto de ser tão diligente
é normal que assim fiques 
quando te apercebes, de vez em vez,
que são alicerces ilusórios sempre
e que têm a falsa eternidade de uma barragem. 

domingo, maio 16, 2021

Volver

 Ele é o tango que eu não dancei
mas que desliza pelo meu corpo
todos os dias quando o oiço
com a sua garganta a vibrar
em saborosas notas com delongas
e podia imaginar no meu peito
todas as sôfregas milongas
a bailar pisando o meu coração.

Os gestos abruptos que me puxam
nessa dança em que ele se colou a mim
sem escapar nada de nós inteiramente
pois somos eternamente nossos sós
com a nossa dor, angústia e mais que amor.

Vuelvo al sur 
um dia sim
mi amor. 

sexta-feira, maio 14, 2021

A morte

 A morte chega e crava os dentes na garganta,
afunila o som até sufocá-lo,
destrói as cordas vocais e suprime o ser

A morte chega e espreme o coração,
que se pensava guardado num cofre
mas não, é apenas arrepanhado de vez

A morte chega e estala os cristais todos
no grito que se faz valer
emudecido mas explosivo no cosmos 

A morte chega e nada sobra para se reter,
porque a finalidade da vida é apenas morrer.

quinta-feira, maio 13, 2021

Chão

 Pode haver quem tenha chão,
mas eu flutuo em marés de algodão
que são as nuvens onde um dia me deitei
e apenas fiquei a sonhar com impossíveis.

Quis oferecer-te o mundo e disse-to,
quis dar-te as minhas mãos mas não pude,
tomei-te como vida e alma e perdão,
amei-te como quem não tem chão.

Não sei porque canto o fado
que tanto me atormenta e me faz sofrer,
mas deve ser mesmo para expiá-lo
na esperança de um dia vê-lo desvanecer.

Este misto de pessoas, todas as mulheres que sou,
sem ser mulher alguma em particular
como todas as outras que o são,
parece-me que nunca poderá estar à altura
de ter hipótese como as outras, de que me enxergues

Porque não sou nada em concreto,
porque não sou nuvens, nem céu, nem tanto vida, 
porque não tenho nada e não tenho sequer chão. 

Eu não te acompanho mais

 Meu coração que vive acelerado
sem saber para onde vai e sai do peito
cada vez que não sei se te vejo
e vive nessa angústia de desconhecer
o que se passa no seu interior.

O que é a paixão?

Eu não, não.

Ninguém me disse o que era isto que sinto
e ninguém sabe o que é isto exactamente,
só sei que não finjo nem minto
quando te digo amar-te completamente

O que é a paixão?

Eu não, não.

É um descompasso que dói
quando sinto que do lado esquerdo
como um desencaixe que mói
vem um sobressalto que me dá medo

Não consigo acompanhar-te, coração
e sei que não vais parar de bater
por isso o meu destino é apenas padecer
e esperar que ele me explique se é paixão.

Desgosto

 Que requintado tormento
que foi abater-se em mim:
o meu céu só tem vento
e o meu mar é carmim.

Eu sei, meu amor, 
que és o meu maior alento
e que a minha vida é dor
e sem ti maior é o sofrimento

Mas este sentimento não tem solução
não o escolhi nem o adivinhei
tal como nunca te vi a ter paixão
por quem eu sou ou pelo que mostrei

Este jeito de te querer tanto
querer bem meu mais que bem querer
é muito mais que efémero encanto
temo que tomou conta do meu ser

O desespero de que nunca te irei ver
só é igual ao desgosto de não te olhar
e a minha vida nunca mais será mar
e a minha morte será apenas morrer.

domingo, maio 09, 2021

Labirinto da Saudade

 Perdi-te no labirinto da saudade
nas esquinas da memória
nos recantos onde te escondes
De vez em quando há espelhos
e já não vejo o meu reflexo
nem a minha imagem no chão

Recordo-me das "ruas de Filadélfia"
da solidão de que fala a canção
e às vezes a angústia e a melancolia
tornam-se maiores do que se aguenta
escutando o peito agoniado e triste
porque nunca mais hei-de te ver 

O meu coração é morada da aflição
e o meu cérebro vive em tormento
a saudade enrodilhou a minha alma
e qual pitão esmaga-a langorosamente

quinta-feira, maio 06, 2021

Tempestade

 Tiveste tornados nos olhos,
das tempestades no escuro
que apenas raios luminosos
clareavam de vez em quando.

Aprendeste a ser a tempestade,
a domar os redemoinhos e o próprio ar,
manejaste todos os escolhos,
sofrendo as ventanias no corpo,
rasgaste a saudade da fúria do mar 
e esse desejo de aplicar a raiva 
num modo tortuoso e torto
sem nunca esquecer a saraiva.

Não dá mais para segurar a tormenta,
a sua força e a sua destreza
arrancam à força o que está dentro,
mexem com a beleza que atormenta
desse amor maior que o amor
que o furacão tem no seu centro.

Eu quero trazer com as minhas mãos,
penetrando entre as nuvens carregadas
desse céu de dor e sofrimento,
os raios de sol que desvirginam a noite,
acabam com o breu e trazem a aurora.