Friday, March 19, 2010

Lisboa sob influência em "Absinto - a inútil deambulação da escrita"

"lisboa, apesar da sua luminosidade única, é uma cidade solitária e triste, mas misteriosa, não tem pressa de mostrar tudo de chofre, e ao percorrê-la adivinham-se enigmas, usurpações, imposturas, traições, desesperos, transgressões, rebeliões e mortes, é uma cidade trágica, mas não enfermiça como londres, nem hostil como as cidades alemãs, austríacas e suíças, e a tragédia, não confundir com pieguice, é sempre a base de um grande romance

palmilhei incansavelmente toda a zona histórica da cidade, em passinhos incertos e encolhidos, como os de um velho e mendicante vagabundo urbano, conheço de cor os seus recantos, as suas passagens secretas sob arcadas centenárias, as suas escadarias intrincadas como espinhaços, descobri fontes e chafarizes, neptunos e nereidas aspergindo água pelos mais diversos orifícios e contemplando, com o olhar de turistas suíços obcecados com a limpeza, o seu próprio verdete e o lodo e o musgo agarrados ao fundo dos tanques

descobri ainda estátuas que não vêm nos guias, janelas com formas estranhas, estruturas em ferro, varandas curiosas, umas repletas de flores e trepadeiras, outras decadentes, com esferas armilares a penderem de ferrugem, e decorei o som único das badaladas frenéticas de cada uma das igrejas da baixa, quase sempre desertas, mas que não deixam de convocar os seus fiéis de tempos mais crédulos, ignorando, ou fingindo ignorar, que estes já morreram, mas para elas talvez nunca tenham morrido

penso que, quando caminhava nessa lisboa simétrica, os outros, os do olhar turvo e sem brilho e que se movimentavam como miniaturas articuladas, em passinhos nervosos e apressados, ainda não como os loucos, simplesmente como desvairados ou apavorados, da mesma forma que não viam essa outra cidade, também não me viam a mim, a não ser uma rapariga que se cruzou comigo uma noite, na costa do castelo, e com a qual troquei, por breves segundos, um olhar frontal e cúmplice, que recordo até hoje, possivelmente por nunca a ter chegado a conhecer e ter permanecido misteriosa, insondável e desejada"

[in Absinto (a inútil deambulação da escrita), RUI HERBON, Parceria A.M. Pereira 2005]

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