sexta-feira, março 19, 2010

"VOAR COMO OS PÁSSAROS, CHORAR COMO AS NUVENS" *

(...) "cheira-me a pacotes de bolachas, a maços de tabaco passados por debaixo das mesas, por debaixo das camas, passados por gente suada, chegada em transportes públicos, os dentes amarelados na falta de dentista e de dentífricos mentolados, o cheiro das prováveis flores do jardim do átrio do hospital, goivos reluzentes de clínicas caras, de lares de idosos de cascais, birre, cheira-me a coisas proibidas pelos médicos, como se os familiares nos quisessem mortos mais depressa, como se quisessem eles próprios curar a sua doença
que somos nós
nós que não morremos de uma vez e ficamos aqui, a viver apenas nas nossas cabeças, mantidos por máquinas, por médicos e enfermeiras com medo de ficarem sem trabalho
cheira-me a éter, o cheiro que espalham nos hospitais para que não nos cheire a mijo, a doença, a morte, mas a mim cheira-me a tudo isso, cheira-me a mijo mas deve ser da cama ao lado porque eu não me sinto molhado, cheira-me a doença mas deve ser da cama ao lado porque nunca me senti tão bem, cheira-me a morte mas deve ser da cama ao lado porque eu estou vivo e não acredito que, quando dizem
já não deve sair do coma
estejam a falar de mim
gostava que a minha mãe me visitasse agora e eu pudesse sentir o seu cheiro, gosto muito do cheiro da minha mãe, quando era miúdo tomava sempre banho com ela, o cotão enrolado no umbigo que se despegava em contacto com a água, só não gostava dos dias em que o cheiro dela se tornava ácido, como se estivesse doente, nesses dias ela colocava rolos de algodão no meio das pernas, depois de tirar os que lá estavam, ensanguentados, parecia que ela tinha uma ferida

estás doente mamã?"

(...)

"alguém disse amor?

se for importante para si, se por eu dizer essas duas palavras mínimas, separadas por um não menos insignificante tracinho, a conseguir levar até ao quarto e envolver a sua figura balzaquiana nos meus braços murchos, acredite que

amo-te

mas não tome demasiado a sério, aceite com a mesma leveza das mentiras piedosas que se aprendem com a idade, a mesma leveza com que disse ao seu marido vou fazer serão"


Autor: RUI HERBON
*
[Voar como os pássaros chorar como as nuvens (um filme português), Parceria A.M. Pereira 2004] 

Um dos melhores livros que já li! A verdadeira obra-prima! :)
a) 1º excerto pg. 37; 2º pg. 85; em cada frase, neste livro imenso, conseguimos sentir uma profunda poesia em cada palavra, é mesmo do melhor, uma experiência inesquecível, recomendo vivamente.

5 comentários:

Anónimo disse...

olá sónia, também achei muito bom. Irei procurar numa livraria perto de mim e ler. Em relação amor, como eu disse, eu não acho que não compreenda o amor, simplesmente não acredito nele. Por tudo o que vi, e vejo,por tudo o que passei em relação a isso e por tudo o que vejo os outros passar e por ver como acabam no fim. Acho que o ser humano é uma pessoa iguista que por momentos tem a necessiade de ter alguem para combater a solidão mas sem nunca lhe retirar o umbigo dele. beijo João.

Sónia Costa Campos disse...

Olá,
deve haver no Corte Ingles, ou na Wook online, senão tens e encomendar. O mais recente é O Romper das Ondas, também é mto bom, extremamente inovador, desafiante e explora a mente da mulher incrivelmente bem.

Infelizmente, na maioria dos casos é como dizes. Mas com a maturidade as coisas mudam, as pessoas não, mas a sua relação com os outros talvez amadureça, nomeadamente nesse campo do amor, é um processo creio.

bjs

Anónimo disse...

olá mais uma vez. Também espero que tenhas razão, pode ser que nesse processo haja pessoas ainda o suficiente altruístas para me poder entregar ao amor. Até lá, viva os livros, os filmes, a música e o teu blogue. :P beijinhos João.

Sónia Costa Campos disse...

aha, obgda, viva à poesia! :D

continuando assim... disse...

Convite
O livro "Continuando assim..." foi maltratado...

Resolvi por isso, e porque tanta gente não encontra o livro onde deveria estar (nas livrarias), recontar a história
Lá no …. Continuando assim…

Vamos em metade da história, o livro reescrito, não está igual (nem poderia!) ao que foi editado.
Obrigada a todos os que vão seguindo ( pois só assim vale a pena).
E já lá vão mais de 200 comentários de pessoas tão diferentes umas das outras…
Um obrigada especial a quem ainda não conhece, e chega de novo

Mais uma reflexão em relação a todo este assunto, e um conselho, se é que me é permitido:

--- quando vos pedirem dinheiro para editar as vossas palavras, simplesmente digam que não ---
BJ
Teresa