sexta-feira, agosto 26, 2022

Quebrados

 Tu acreditas que alguém pode tirar a dor existencial de alguém? Lembro-me que quase pareceu que sim, naquele abraço de irmãos da mesma dor da violência materna, que nos fazia desmanchar em pranto e afagar-nos o corpo como se nos puséssemos a comprimi-lo para amparar e empurrar os cacos para dentro. Era a tal da mágoa que cura a mágoa, dois despedaçados já não tão perdidos nem largados, ou pelo menos já não sós. Será que foi mesmo dor partilhada, dor aliviada? Que guardarás tu dessas alturas? 

Eu podia ser tu se não me segurasse, se não tivesse juízo, se não te tivesse como exemplo para me acautelar. Era o que eu pensava. Ainda acho que sim, que era isso mesmo, que também eu tenho vigiado com alguma atenção essa minha tendência para me deixar ir sem querer saber, porque lá no fundo, bem lá recolhida, está essa incabível mancha de desespero perante o horror e o terror e a raiva e o nojo e o ódio e a maior dor que se for acessada receia-se que seja bomba nuclear. 

Pus-me em posição de bailarina como no filme com o Patrick Stewart, mas não acessei, mesmo que me garantam que não quebro, eu sei que sim, porque um dia já quebrei e não há visão mais triste do que a de um corpo insustentado porque tudo por dentro está quebrado. Por isso, sim, pus-me em posição, mas só deixei que o sol me atravessasse e eu continuasse mais um pouco sem ainda ter de atravessar. 

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