sábado, dezembro 04, 2010

A porta e a chave

Abre a porta devagar e entra.
Suavemente, esse teu halo branco
envolve toda a extensão do teu corpo.
Alvo e translúcido se torna o teu ser.

Espraias-te em nuvens da cor do céu
e não há luz que não te atravesse
e te rasgue em mil pedaços
a tua face, esse teu véu.

Serena é a visão que me acalma;
indolente, langorosa, sem dor,
apenas a vibração constante
e ébria, permanecem fiéis.

eu sou a porta e tu és a chave.

terça-feira, novembro 16, 2010

Os mete-nojo deste lugarejo

Metem-me nojo «os fatos»
que andam por aí em contralto
armados em superiores, são mais sujos que o lixo,
mais reles que as ratazanas do esgoto
esses ditos senhores doutores.

Metem-me nojo os «sapatos de vela»,
também produzidos em série,
que pisam nos pobres transeuntes
com o seu olhar de desprezo
trazem «os outros» numa trela
é a escravidão que eu agora revejo.

Objectos de luxo que desfilam
em paradas de mete-nojos;
são eles carros, roupas, delicatessen,
esses burgueses, a camada alta,
ignora quem lhes produz esses artigos:
o povo trabalhador, os que perecem.

Assim, os mete-nojo habitam este lugarejo
espalhando os seus negócios pela terra,
onde têm como dirigentes altamente remunerados
os seus amigos e familiares mete-nojo,
que exploram «os outros» que são,
como em tudo o resto no planeta,
noventa por cento dos que têm coração.

quarta-feira, novembro 10, 2010

A Casa

Construí uma casa para nós,
mas habita apenas na minha imaginação,
pois não é feita de tijolos,
é mormente feita de sonhos,
muitos desejos e uma imensa paixão.

É lamechas a decoração que invento,
na realidade tem cores e linhas sóbrias,
minimalistas e nada rococó.
Digo-a lamechas por pensar em cada traço
teu e meu e transpô-lo para cada móvel,
para cada pavimento e disposição de objectos.
Mas de verdade ela é cinza, azul noite, negra,
com apontamentos de vermelho,
envolvidos em pacíficos mantos de branco,
um pouco como o nosso amor.

A nossa casa é rectilínea, mas flutua como nuvem,
marmoreada com pedras preciosas encastradas,
a anciã técnica da pietra dura adorna uma parede externa
ancorada no pátio, da parte de trás onde bate o sol.

Não há espaço para arrependimentos nem mentiras
em todas as mesas e cadeiras que temos.
Não há jardim, nem árvores tão velhas quanto nós,
nem sequer flores porque eu sou alérgica
e porque tu simplesmente não as entendes.
Dizem que é mais fácil amar alguém
quando não temos de viver com ela sempre,
mas contigo eu vivo todos os dias
na casa que construí para nós
e parece-me que as amplas janelas da sala
estarão sempre com vista para o nosso amor.

sexta-feira, outubro 29, 2010

sexta-feira, outubro 22, 2010

O Metro

Salto umas escadas, apressada, não vá ele fugir...
Já sentada, o alívio sente-se no ofegar na ponta da língua,
e depois o coice que gera uma onda de calor no corpo,
uma corrida do sangue que estava atrasado para o cérebro.
Tento lembrar-me das carruagens antigas,
mas não consigo... apenas me recordo de momentos da infância
em que eu me arrastava - enquanto o meu pai me levava pela mão a tentar apressar-nos pelos túneis agrestes
- só para que eu pudesse ver durante mais tempo o chão cintilar:
pensava que estava a pisar o chão da lua - a negritude do chão era tão atraente, tão brilhante - feito com pó das estrelas.
De repente, tocam-me nas narinas os dedos de uma fragrância familiar. Espalha-se pelo túnel e adivinha-se o crepitar das castanhas, o fumo quente e salgado de um tempo antigo.
Ao olhar para cima vejo as pegas onde as pessoas se seguram, todas vazias, tremelicam inseguras,
umas vibram mais que outras, assim como as pessoas, na sua estoicidade de aço a tentar combater a inércia.
Hoje em dia reaproveitam o chão das carruagens, cinzentos e com os círculos em relevo mais claros devido ao desgaste; penso em como aquele linóleo será a mala de alguma rapariga rica, bem sucedida e à espera de alcançar um qualquer status por usá-la. Aspira-se o céu e da maioria das vezes não se percebe que é com o chão que lá se chega...

domingo, outubro 10, 2010

Poema das cinzas

Há uma certa melancolia em saber que nada tem grande sentido. Por vezes, também se sente um alívio por se saber que nada realmente importa. É apenas um pensamento para dois poemas, como um concerto para dois pianos. A sinfonia dos velhos alinhados à beira da cova onde fazem descer um caixão negro de patina brilhante, todos eles simplesmente à espera da sua vez.
A dor que sinto é tão grande que dilacera tudo o resto que o meu coração albergou. Sensações cálidas que o aqueciam, são agora dissipadas como as cinzas mortais espalhadas e tornadas invisíveis pelo vento da tormenta. Preciso que alguém me guarde, como um ente amado faz com os restos mortais cinzentos que conserva num pequeno recipiente. Hoje e antes, o meu corpo fora sempre a urna onde se esconderam os meus fracassos e vazios. Apenas uma colecção de cinzas, apenas isso...

quinta-feira, setembro 30, 2010

Ser

Eu sou alguém que vive à margem do que queria ser.
Estou acampado debaixo do vidoeiro, no limite do rio que corre e ninguém vê.
Serei sempre aquela árvore de tronco fino, gasto, envelhecido pelo olhar das aves.
Agora vejo que, diferentemente dos argonautas, penso que a única coisa necessária para se ter vivido é apenas sentir, não é viver. Sentir o mundo inteiro e todas as coisas que nele existem sem ter de visitá-las fisicamente. Sentir - essa propriedade do ser humano que nos faz ser diferentes dos outros seres e que nos permite viajar sem sair do mesmo lugar. É aquilo que se chama de turismo infinito.
Assim se constrói o Ser.

terça-feira, setembro 28, 2010

Je suis un cadavre exquis
e o teu coração, forte, é a casa onde eu moro, où j'habite.
I could love you in every way,
in every language and in any place,
mas é aqui que te amo e assim que te quero,
in the language that I want.
E da quella finestra ti posso vedere,
lontano, ma mai del cuore.

sexta-feira, setembro 17, 2010

O papel

Recorto o papel minuciosamente
com cuidados de criança
tesoura de pontas redondas
e no entanto as arestas do que recorto
estão toscamente desenhadas.

Tinha vinte e uma páginas de onde escolher
o papel que havia de talhar.
Sei que o que escolhi não era meu
daí o desafio de o recortar.

Sombras de vincos manchavam o meu papel
que não se conseguia manter plano
nem sequer límpido.
A sua cor era cada vez mais chamuscada
pelo calor dos cortes que eu operava.

Esmerei-me para que não me rasgasse a pele
o papel
que eu tão cuidadosamente recortava
mas amiúde senti-o raspar na minha mão
como que a ameaçar-me...
... a tentar penetrar em mim.

O som num compasso binário
que a tesoura no seu abrir e fechar de pernas
fazia ao abrir caminho
fez-me recordar do pulsar do mundo.

Aquele som
naquele papel
e o pulsar presente numa vida inteira
desse bolígrafo
desse flamenco
no ritmo do coração do mundo.

Assim despertei
para a importância do papel
para a importância da tesoura
e para a importância do mundo.

terça-feira, setembro 14, 2010

Uma sinopse literária do nosso amor (em construção)

Sempre que voas como um pássaro, para longe, cá dentro choro como uma nuvem num peito assolado pela tempestade anunciada.
Absinto-te pela distância, mas tenho em mim impregnado o cheiro dos girassóis desse teu corpo áureo.
Ainda mais forte do que tudo é o romper das ondas do que sentimos em uníssono; é essa a chave que faz funcionar o motor do nosso coração.

para Rui Herbon.

quarta-feira, agosto 18, 2010

Ego-saturação

A relação que tenho comigo,
sendo a mais intensa e duradoura
de todas as relações que já tive,
deixa-me farta de mim mesma.

Demasiados eus, demasiados céus,
demasiados ais e demasiados mais.

Todas as unidades de tempo,
milimetricamente contadas,
vividas e tão saturadas
que me tiram hoje o alento.

Estou cansada deste emprego
sem férias
este laborar constante
que torna tudo tão bisonho.

Não sou quem me entrego,
mas sim alguém distante
deste mundo implodido
onde o horizonte é tristonho.

Quero sair deste modo implorativo
desta auto-comiseração forçada
talvez por alguém que não sou eu
talvez por alguém melhor do que eu.

quarta-feira, junho 23, 2010

Eu-legia

Que ninguém chore,
porque parte mansa esta criatura
que foi tão vossa como da água.
Outrora se debatia, revolvia e revolucionava
no seu modo de se rebelar,
mas já há quase uma década que não é assim.

Na sua lembrança tem consciência
de que privou de algumas das maiores felicidades
que o ser perene, temporário, experiencia.

Atravessado pela degeneração fugaz,
este ente apercebe-se, no seu fim,
que na morte não há lugar para arrependimentos:
é como ouviu de certa vez - «todos morremos culpados».

Aos poucos, a necessidade de cultura escasseia-a,
lentamente a solidão é a melhor companheira que se tem.
O que é isto senão a morte?
Pois que continue a descansar em paz.

sexta-feira, junho 18, 2010

O tempo das memórias

O tempo é obsoleto
como os três relógios que disponho numa caixa
para que perdurem como memórias do que já não é.

A dor continua a incomodar-me naquele lugar,
aquela dor que me há-de matar,
tal como o sorriso dela que um dia
ainda há-de ser a minha morte.

A mulher que tinha uma língua de vinagre e que
cada vez que chamava pelo meu nome
a acidez da bílis se me agitava no âmago,
tinha em mim a sua criação mais extrema.

Durante o primeiro dos três relógios
ela se imprimiria em mim
e eu seria muito ela.
Durante o segundo, porém,
já ganha a personalidade, pareceria menos ela,
muito mais eu, mas também os traumas
que começaram por causa dela.

O terceiro relógio chegou. Eu já não sou quase nada
e a olhar para trás vejo o que muito pouco fui
e o nada que apenas restou.

quarta-feira, maio 26, 2010

sem título

Não tenho quem me tire o cotão do umbigo.
Sei que viajaste por nuvens brancas
e voltaste para beber do mesmo rio
mas nunca mais te tive comigo.
Liras de platina soavam ao longe
quando vibravam as águas da memória
através da luz que emanavas.
Ainda assim, permanecia o aglomerado,
lento e enfadonho, do cotão no meu umbigo.
Os mistérios que lobriguei, vestido de cinzas,
foram-se adensando com o passar das nuvens
e o teu semblante, figura alva e altiva,
jamais pude alcançar.
Consigo ver o pormenor da roda dentada,
ou mesmo a espiral do parafuso,
os magros fios metálicos que ligam tudo
nesse mecanismo do tempo ceifado.
Sozinho, continuei à tua espera,
não como quem aguarda por um transporte público,
mas como quem anseia por se transportar sem meio,
flutuar sem ficar sem os seus pés no chão,
correr mais rápido que o som da nossas vozes.
Estirado, de barriga ao alto, meio estremunhado,
passei o dedo indicador na cova do umbigo
e lá estava ele, o cotão aglomerado,
que só posso tirar sozinho.

quinta-feira, maio 20, 2010

A presença da ausência...

Imaginei-te ao pé de mim
provavelmente já mais vezes
do que as que realmente estiveste.
Sei que nem sempre será assim
e na minha mente toda a hora aconteces.
Mas para nós a vida passa célere
e o amor, esse, nunca tem fim;
os dias, no entanto, são morosos
e as noites dão cabo de mim.
As insónias corróem o pensamento
qual ácido sulfúrico nas veias cerebrais,
enquanto sonho com o momento
em que não diremos Adeus não mais.
Ao meu lado, sinto sempre a falta
que me faz a presença do teu corpo
um recorte de uma ausência cálida,
quase física, ou estarei eu já louco?

quarta-feira, maio 19, 2010

Maio, o mês dos imaculados, dos que sofrem de mil e uma maleitas, e no entanto a mãe de todos, Maria, é visitada e adorada, celebrada a sua santidade e relembrado o seu sacrifício - o padecer de toda uma vida concentrado no crucificar do seu filho.

(in Hospital Sta Maria)

domingo, maio 09, 2010

Só a dor é real

Já não sei o que é não sentir dor. Já não me consigo lembrar.
Cravo as unhas na terra e arrasto-me a muito custo, qual verme do húmus. A humidade e o mosto, o bolor de uma vida, espalhados pelo chão fétido. O corpo é vilipendiado, uma e outra vez, como são os caixões pelos ladrões de cadáveres. A dor não tem fim e esquece-se o seu princípio. Os membros e o rosto ardem, quando o nariz dos cães e o rabo das mulheres estão quentes, é porque eles estão com febre. As costas tortas, uma espinha dorsal num invertebrado?, e toda uma vida não-armazenada em casca de caracol. É tal, o fenómeno pirético, que os olhos saem dos seus globos circundados por chamas, aros ardentes, e flamejam as lágrimas antes que elas consigam escapar. A memória, toda, excepto pela mão que segurará a minha no final, esfumaça-se nas altas e crepitantes labaredas da febre. Nada como ser atingido pela amnésia da febre e pela pura inocência da dor, para começara chamar nomes às pessoas e dizer coisas que jamais me imaginei a cogitar. Será que o corpo ardendo passa a ser propriedade do demo?
Uma bactéria fulminante é um agente do diabo, como são os bombistas-suicidas: irradiam e arrasam com tudo à sua volta; todos os pedaços de carne, todos os recantos do corpo em astenia.
Os lábios, mais reais do que nunca, esquentam, dilatam-se de tal modo que me parece que também eles, depois de vociferarem palavras indecorosas, ameaçam em gesto de penitência expirarem-se numa explosão. É o fenecer da alma e o padecer do corpo que me fazem ter neste momento a certeza: só a dor é real.

quinta-feira, maio 06, 2010

A tarte do desejo

A maçã do pecado era uma tarte,
uma tarte de maçã dourada
com um travo a luxúria
muito fel e desengano
foram os sabores da desventura.

A polpa do fruto era a parte
que se fundia na massa deitada,
o resto eram pedaços e penúria
deixados sem causar dano
ao doce polvilhado de amargura.

O pau de canela dá-lhe arte,
para despertar sentidos é condenada,
com essa especiaria polvilhada a fúria
embora quando me engano
sei que o acre dá lugar à doçura.

quarta-feira, abril 28, 2010

Sem título (2)

Ela é uma miniatura de ti,
quando ela pensa e fala
aquilo que tu não dizes.
Igual a ti,
nos teus traços morenos e altivos
de uma nobreza genuína,
rara de se encontrar.

Tu és como os arco-íris que vejo
e me deslumbram
mesmo embora nunca chegue
a ver todas as suas cores,
a sua complexidade sempre me fascina.

Quando seguro a tua cabeça,
um ovo delicado 
na cova da palma da minha mão pousado,
chego a sentir o palpitar de um feto
que se une com a minha veia
que vai directo ao coração.
Aí, também ela é um só,
de novo, contigo,
nesse palpitar constante e seguro.

Tudo se encaixa, por momentos,
naquele palpitar
- o pulsar de todo o mundo se funde num só -
e o que resta é apenas Silêncio.

segunda-feira, abril 26, 2010

sem título

Quero fazer de ti as minhas manhãs de sol, que me aquecem lentamente o corpo num tímido abraçar.
E quando chove no meu mundo, quero fazer de ti meu guarda-chuva e refugiar-me, no teu corpo magnânimo, do manto cinzento que cobre o céu.

Quero que faças comigo o que a Primavera faz às flores, e que me envolvas no perfume dos crepúsculos de mil tons, enquanto apartas os caminhos luxuriantes desses jardins.
Os meus dedos percorrem todos os sítios por onde andaste e desejo arduamente ir contigo nessas tuas viagens. Trilhos de escarlates ladrilhos, os da vontade e do medo. Trilhos carmim, fogosos, os da liberdade alcançada.
Por fim, quero fazer-te minha noite, para te marcar com um último beijo frio.

quinta-feira, abril 22, 2010

De cinzas a cinzas.

Se convives com problemas,
não deixes que te esquente
o facto de teres dilemas
pois a morte chega a toda a gente

Para quê tanto alvoroço,
mais as brigas e confusões,
ainda te dá mas é um troço
e não ganhas soluções

Perante a inevitável morte
tudo o que existe é relativo,
nunca se sabe se tem sorte

Quem é inocente ou bandido
nunca escapa ninguém ao fim,
de cinzas a cinzas, é só assim.

terça-feira, abril 13, 2010

Manifesto pela liberdade da alma

Eu não posso mais ser a tua garrafa de oxigénio, que tanto te pesa nas costas quando mergulhas nas lodosas águas das tuas memórias; o teu chá relaxante, o chocolate que te acalma a libido, ou mesmo o tóxico tabaco que te esfumaça a ansiedade.

Não estou aqui sempre para te afagar o teu, já parco, cabelo, e dizer-te que tudo irá passar, que juntos conseguiremos ultrapassar tudo; tão simplesmente porque tu desististe, inúmeras vezes, de nós e eu sou apenas a parte da tua vida que escolheste ignorar.

Um dia pedi-te a minha alma de volta e disseste simplesmente que eu podia ir buscá-la quando quisesse. Eu voltei para resgatá-la da masmorra que o sofrimento da indiferença e do abandono construíram, com mil cuidados, durante anos a fio. Agora estou aqui, de alma livre e repleta de episódios fechados com lacre, e vazia de tanto ter estado cheia.

domingo, abril 04, 2010

A morte é uma lenta escrita...

Na maior parte das vezes, durante toda a minha escrita, tinha assunto suficiente para usar as folhas de papel na íntegra. E tudo tinha sempre um título, por mais que eu não o indicasse nos textos que discorria.
Agora tenho a sensação de que, de cada vez que me socorri através da escrita, de cada vez em que tudo era demasiado e a inspiração não faltava, houve algo em mim que eu matei, apunhalando-o pela frente com a caneta bem afiada. A pessoa que eu sou já morreu muitas vezes: sempre que quis que a minha existência terminasse, e sempre que dei por mim a continuar.
Pensei que houvesse muitas pessoas como eu, que sofriam de males corrosivos, mas quase invisíveis, e expiavam-nos através da escrita numa lenta dança para entreter a morte.

Nada restará de nós, no entanto. Todas as palavras que dissemos foram sugadas pelo negro vácuo do esquecimento. Assistimos impotentes à sua fatalidade e não nos mexemos, paralisamos perante os seus longos braços de tinta correctora. Não soubemos, jamais, lutar contra os desígnios que nos eram apresentados, apenas escrevemos porque não conseguimos dar sentido a nada.
Exercício vão? Não, não me parece. Transpira-se luz na tinta que modelamos sobre as linhas ténues no papel. Mais ainda, transpira-se a vida de quem não viveu.

terça-feira, março 30, 2010

Tamara

Vinte e quatro horas de prazer renegado, numa terra distante, num bar, a escura loca de alimárias, onde te vi chegar de mansinho como uma musa do xaile adriático. 

Os teus olhos, tulipas negras, e os teus infinitos cabelos de seda e tinta-da-china, ambos incrustados numa superfície de alvura, num corpo de alaúde que tocava a música com que Orfeu acalmou o dragão que eu agora me sinto, perante a tua cândida figura. Rosto desenhado por Eros e Psiche, com plumbagina na polpa das digitais, esfregando a poalha plúmbea contra o papel das nuvens rarefeitas, numa criação de amor. Eu, um tonto, melodramático, neurótico até aos ossos, transformo-me defronte à oferenda que lobrigo, e quando o teu embrulho me é apresentado com a negrura dos teus olhos e cabelos – nem o brilho sintético do teu mínimo tope branco consegue competir com eles –, sou atraído, como um pequeno insecto noctívago, para a lura do umbigo no teu ventre de alabastro. 

Desfio um punhado de estribilhos, ao som do teu alaúde, qual trovador lendário e os teus lábios lúbricos abrem as suas asas de borboleta álacre. É, então, que o calor dos sentimentos ígneos, num crescendo, deseja engolir o teu pequeno corpo com um terno abraço. Imagino-me: que o interior das tuas coxas se aninha na concha das minhas mãos e eu, apartando-as, beijo o húmido casulo da tua orquídea com o meu androceu. Adivinho-me: onde consigo tocar os teus pequenos seios, montes helénicos, que, perfeitamente, formam cumes de gelo que derreto quando roço o polegar e o indicador, langorosamente, por eles, como se fosse um alpinista embriagado pela falta de oxigénio. 

Trazes as bebidas que foram pedidas e a lágrima que desliza do copo de cerveja gelado me transporta para o suor que escorrega do vale das tuas costas, enquanto eu te envolvo por trás, tocando-te no pescoço com lábios de algodão. 

Nada pode matar esta sede. 

Reminiscências de fantasias, sonho ou realidade, nunca se sabe, tal é a ebriedade com que os vapores do Adriático me anestesiam – essas gotículas, a humidade da tua língua, os corpúsculos no ar, desesperados, numa correria insana, padecendo do mesmo feitiço desse druída primordial. E tu, a vestal cujo nome faz lembrar, imediatamente, o mel do suco fértil dos oásis que tu me apresentas, um a um, várias vezes, nesta noite cálida. 

A madrugada é generosa e o fruto, que sugo pelos teus lóculos, é essencial para a minha sobrevivência naquele local obscuro. Linimento que me molha os lábios e me arrepia os poros, essa tua polpa desmesuradamente doce, para quem, com sofreguidão, anseia fundir-se contigo, absorver-te. 

Nada pode suster este desejo.

sábado, março 27, 2010

Jul. 1999 refugiada in Ericeira

Continuo a constatar "intermitentemente" que as pessoas são estranhas. Quero culpar algo por isso! Posso culpar o movimento giratório do mundo? Não, não há culpados! A própria culpa está em não haver qualquer culpa.
Ó palavras insuficientes! Palavras vãs e de ditos pardos... Vivam as flores, não, minto, nada sobrevive; pode viver mas não sobrevive. E como isso é de uma tristeza abominável!
Pessoas, palavras: velhos e cansados assuntos.
Tenho a brisa que é fresca e oportuna, quando me adivinha o quente da pele. Tenho o Sol que é quente e se deixa corromper pela brisa. Tenho o mar, ali, mais à frente, lá em baixo. Não sei ao certo se isto me basta. Mas não quero pensar nisso. Penso em nada e não me adormece.

quarta-feira, março 24, 2010

Da Amizade

Dizem que não há nada melhor que encontrar um velho bom amigo, do que fazer um novo. Eu perdi, às mãos da distância, muitos amigos pelo caminho. Tantos os nomes que ficaram para trás: começados por quase todas as letras do alfabeto. Também houve alguns de quem me esqueci o nome, certamente, mas esses não foram de amizades muito intensas. Houve alturas em que acreditei que os amigos eram o mais importante que eu tinha, que eram a família que eu tinha escolhido e, portanto, dava tudo por eles. Outras, mais raras, em que sentia pelos amigos uma genuína irritação, pois eram entraves para a minha morte e por isso as mais chatas à face do planeta. Hoje em dia, os amigos não me dizem nada e eu nada lhes digo. Estão todos demasiado ocupados a tentar fazer o melhor pelas suas vidas e alguns, também, pela vida de outros, que não conhecem. É provavelmente mais fácil ser-se um amigo, um bom amigo, para pessoas que não se conhece do que para pessoas com quem se tem um passado.

...

 Com o tempo, aprendi que os amigos nada puderam, ou podem, fazer por mim, pois as minhas feridas já eram demasiado profundas, apesar de não expostas, e ninguém nunca soube quem eu era, nem muito menos de que maleitas padecia. Quando estive à beira do fim, não houve, de nenhuma das vezes, quem por me segurar a mão me retirasse a galopante mortalidade do peito. É, quando somos mais novos, da mesma forma que sentimos intensamente as coisas, também a acção das amizades que fazemos nos parece igualmente forte. Depois, com o tempo, tudo se esfria, neste banquete de emoções que é a vida.

sexta-feira, março 19, 2010

Lisboa sob influência em "Absinto - a inútil deambulação da escrita"

"lisboa, apesar da sua luminosidade única, é uma cidade solitária e triste, mas misteriosa, não tem pressa de mostrar tudo de chofre, e ao percorrê-la adivinham-se enigmas, usurpações, imposturas, traições, desesperos, transgressões, rebeliões e mortes, é uma cidade trágica, mas não enfermiça como londres, nem hostil como as cidades alemãs, austríacas e suíças, e a tragédia, não confundir com pieguice, é sempre a base de um grande romance

palmilhei incansavelmente toda a zona histórica da cidade, em passinhos incertos e encolhidos, como os de um velho e mendicante vagabundo urbano, conheço de cor os seus recantos, as suas passagens secretas sob arcadas centenárias, as suas escadarias intrincadas como espinhaços, descobri fontes e chafarizes, neptunos e nereidas aspergindo água pelos mais diversos orifícios e contemplando, com o olhar de turistas suíços obcecados com a limpeza, o seu próprio verdete e o lodo e o musgo agarrados ao fundo dos tanques

descobri ainda estátuas que não vêm nos guias, janelas com formas estranhas, estruturas em ferro, varandas curiosas, umas repletas de flores e trepadeiras, outras decadentes, com esferas armilares a penderem de ferrugem, e decorei o som único das badaladas frenéticas de cada uma das igrejas da baixa, quase sempre desertas, mas que não deixam de convocar os seus fiéis de tempos mais crédulos, ignorando, ou fingindo ignorar, que estes já morreram, mas para elas talvez nunca tenham morrido

penso que, quando caminhava nessa lisboa simétrica, os outros, os do olhar turvo e sem brilho e que se movimentavam como miniaturas articuladas, em passinhos nervosos e apressados, ainda não como os loucos, simplesmente como desvairados ou apavorados, da mesma forma que não viam essa outra cidade, também não me viam a mim, a não ser uma rapariga que se cruzou comigo uma noite, na costa do castelo, e com a qual troquei, por breves segundos, um olhar frontal e cúmplice, que recordo até hoje, possivelmente por nunca a ter chegado a conhecer e ter permanecido misteriosa, insondável e desejada"

[in Absinto (a inútil deambulação da escrita), RUI HERBON, Parceria A.M. Pereira 2005]

"VOAR COMO OS PÁSSAROS, CHORAR COMO AS NUVENS" *

(...) "cheira-me a pacotes de bolachas, a maços de tabaco passados por debaixo das mesas, por debaixo das camas, passados por gente suada, chegada em transportes públicos, os dentes amarelados na falta de dentista e de dentífricos mentolados, o cheiro das prováveis flores do jardim do átrio do hospital, goivos reluzentes de clínicas caras, de lares de idosos de cascais, birre, cheira-me a coisas proibidas pelos médicos, como se os familiares nos quisessem mortos mais depressa, como se quisessem eles próprios curar a sua doença
que somos nós
nós que não morremos de uma vez e ficamos aqui, a viver apenas nas nossas cabeças, mantidos por máquinas, por médicos e enfermeiras com medo de ficarem sem trabalho
cheira-me a éter, o cheiro que espalham nos hospitais para que não nos cheire a mijo, a doença, a morte, mas a mim cheira-me a tudo isso, cheira-me a mijo mas deve ser da cama ao lado porque eu não me sinto molhado, cheira-me a doença mas deve ser da cama ao lado porque nunca me senti tão bem, cheira-me a morte mas deve ser da cama ao lado porque eu estou vivo e não acredito que, quando dizem
já não deve sair do coma
estejam a falar de mim
gostava que a minha mãe me visitasse agora e eu pudesse sentir o seu cheiro, gosto muito do cheiro da minha mãe, quando era miúdo tomava sempre banho com ela, o cotão enrolado no umbigo que se despegava em contacto com a água, só não gostava dos dias em que o cheiro dela se tornava ácido, como se estivesse doente, nesses dias ela colocava rolos de algodão no meio das pernas, depois de tirar os que lá estavam, ensanguentados, parecia que ela tinha uma ferida

estás doente mamã?"

(...)

"alguém disse amor?

se for importante para si, se por eu dizer essas duas palavras mínimas, separadas por um não menos insignificante tracinho, a conseguir levar até ao quarto e envolver a sua figura balzaquiana nos meus braços murchos, acredite que

amo-te

mas não tome demasiado a sério, aceite com a mesma leveza das mentiras piedosas que se aprendem com a idade, a mesma leveza com que disse ao seu marido vou fazer serão"


Autor: RUI HERBON
*
[Voar como os pássaros chorar como as nuvens (um filme português), Parceria A.M. Pereira 2004] 

Um dos melhores livros que já li! A verdadeira obra-prima! :)
a) 1º excerto pg. 37; 2º pg. 85; em cada frase, neste livro imenso, conseguimos sentir uma profunda poesia em cada palavra, é mesmo do melhor, uma experiência inesquecível, recomendo vivamente.

quinta-feira, março 18, 2010

Do Amor

O amor é provavelmente mais parecido com a morte, devido ao seu carácter de solidão. Já a vida, seja ela mais luzidia ou sombria, faz-se na união, celebra-se entre dois ou mais, com um copo de uma bebida qualquer ou com um pedaço de comida. O trago da mesma bebida e o mesmo bocado de comida podem servir para afogar a dor dos seus outros dois companheiros: o amor, a morte e a vida são a verdadeira santa trindade.

O que me fez acreditar no amor foi algo impossível, ao contrário da morte e da vida, que nunca entendi, apesar de ter procurado esmiuçá-las dia e noite.

P.S.: (este post encontrava-se em rascunho já há demasiado tempo)Queria escrever mais sobre este assunto tão imenso, mas não posso. Não quero condicionar ninguém, não quero expor ou denunciar o amor. Cabe a cada um descobrir... mas atenção, o melhor é esperar por ter crescido o suficiente enquanto ser humano para ir à sua descoberta, porque o amor não perdoa, e se iniciar-se nessa busca demasiado cedo, sem maturidade suficiente para abarcar e respeitar a sua imensidão, ele dilacera e corre-se sério risco de nunca mais o compreender.

quarta-feira, março 17, 2010

A Poesia é para sobrevivermos

Só a Poesia tem beldade no Mundo. Sem ela mais valia nunca existir.
A Poesia não tem uma só Língua, nem palavras, mas sim, ela própria é a Linguagem como nos sentimos no Mundo, puro encantamento de Alma, estado divino da Arte dentro de nós. Não é o que nós concebemos, pois ela existe com autonomia plena desde os primórdios e só invade a Alma e o Coração de alguns que vêem e sentem para além do que é tido como realidade.

sexta-feira, março 05, 2010

Por causa de uma Criança

Tenho medo de que cresças sem que eu te acompanhe e, mais ainda, de me esqueças, porque é isso o que já aconteceu.
Não te lembrarás dos primeiros livros que tiveste e que eu te dei, nem das outras prendas que te enviei sem saber se chegariam até ti.
As vezes em que te ensinei as cores e a dizer yee-haw sempre que atravessávamos por lombas nas viagens de carro, agora invisíveis.
Não te vais lembrar de mim, dos meus cuidados e afagos para contigo, as vezes em que te embalei, te protegi do frio e tu ficavas a olhar para mim fascinado com o meu cabelo.
A vida continuava complicada, mas a felicidade nunca foi mais simples.
Momentos de um entendimento e de uma doçura ímpares. Eu vou guardá-los e se a memória não me atraiçoar, saberemos que eles existiram, que não foram apenas fruto da minha imaginação e que o nosso Amor também foi de verdade.

quarta-feira, março 03, 2010

Em tua ausência...

Pediste-me segredo e eu guardei-te
por debaixo de frondosos choupos.
Lavei-te as feridas com as minhas lágrimas
e cheiraste-me a rosas,
desfiadas as suas pétalas no meu colo.

Dentro de mim, quando ouvia a tua voz,
vibravam pequenos cristais,
prismas de luz pela tua boca irradiados.
Longe de ti as palavras perderam o som.
Deixei-te vestido com sombras e entregue à noite.

Às vezes, tenho dúvidas sobre o teu rosto
e consulto uma tua fotografia, como se fosse
o dicionário da memória da minha paixão.
Fecundo, o teu abraço, e longos, seus dias de sol.
Agora também ele, jaz na fotografia,
enquanto o teu corpo, semente da penumbra,
marca-me a ferro e brasa com a tua ausência...

Não durmo, tenho pesadelos. Uma e outra vez
tu apareces neles e sempre a sensação angustiante
de que te vou perder, engolido por uma onda,
ou por outra avassaladora fatalidade,
a que assisto impotente, a querer gritar
e a despertar à força, arrancada dos seus ventres
da mais dolorosa maneira.

sábado, fevereiro 27, 2010

De onde vem todo este vento?

(I. e P. na sala-de-estar.)
I - Achas que este vento há-de varrer o mundo?
P - Não. Há-de arder.
I - Arder?
P - Sim, esfumaça-se... ou não fosse vento.
I - Não sei como te deixas ficar, com esse contentamento perante a combustão do mundo. Não te dá pena não termos mais tempo?
P - Tempo para quê? A combustão do mundo... se calhar é a única solução para exterminar os piores canalhas da face da Terra.
I - Ora, tempo para nós, para as gargalhadas e carícias em uníssono. Não queria perder-nos antes de nos termos. Entendes?
P - Não. Falas chinês e eu só sei o que está a dar na televisão agora, não sei de mais nada.
I - Irritas-me com a tua ausência marcada nessa indiferença que rasga tudo sem fazer nada.
P (interrompe) - É. Às vezes deixo de existir, não sei para onde vou, um pouco como o vento...
I - Que engraçadinho.
P - Sabes, há coisas que não se devem dizer porque depois não há forma de as retirar, mas ainda assim quero que saibas que se estivesses em apuros e me ligasses da China, eu iria até lá para te salvar.
I (sorrindo) - Ah, pronto, está bem. Que bonito. Obrigada, também não esperava outra coisa de ti.
(pausa)
I - Sabes qual é a raiz quadrada da existência?
P - Lá estás tu com os teus atrofios.
I (interrompe) - Não, era só uma piada, por acaso, tipo charada. A raiz quadrada da existência é PI.
P - Ah, e então?
I - Então, PI é igual a Pessoa Individual.
P - Hmmm, vou levar algum tempo, mas já lá chego... Então e quando é que a tua Pessoa Individual se deixa penetrar pelo meu P*ço Intelectual?
I - Que parvo!... Mais logo? (deitando a língua de fora numa careta)
P - Tens de admitir que foi boa, esta; melhor que a tua, não?
I - É, mas não bate o que tenho para te dizer: estou grávida! E então, hmm, que achas disto agora?
P - Quê? Como é que isso foi acontecer?!
I - (interrompe) Olha, foi o teu P*ço Intelectual quando esteve a brincar com a minha Pessoa Individual.
P - Ah ah ah! Agora estiveste bem.
I (rindo-se também) - Vá, deixa essa caixa comedora de mentes e anda... vamos jantar.
P (desligando a tv e seguindo I, apercebe-se do barulho lá fora...) - Realmente está muito vento!

*=i

quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Esquinas da Vida

Uma pessoa nunca sabe o que está ao virar da esquina. Nós, os pedestres, não temos direito aos postes com espelhos convexos, que avisam quem, ou o quê, vem do outro lado.
É um pouco como na vida: ninguém nos avisa, nem temos forma de ver o que nos espera se quisermos mudar de trajecto. É daqueles acasos que a vida nos dá, premiando-nos como se fôssemos todos jogadores diários de totoloto - às vezes tem-se sorte, outras não.

No outro dia, vi duas pessoas chocarem violentamente ao cruzarem uma esquina e eu, como estava do outro lado da rua, apesar de poder avistá-los não conseguiria avisá-los a tempo de evitar o pior. O choque foi tal, que uma senhora foi impulsionada para trás, caindo ao chão. As pessoas circundantes acudiram-na e o rapagão que a derrubou também, pedindo-lhe desculpas e oferecendo ajuda para lhe carregar os sacos, ainda que ele estivesse a ir em direcção contrária e com hora marcada quando tudo se deu.
As pessoas olhavam para o rapaz e culpavam-no, secretamente, com as suas expressões faciais que gritavam acusadoras: "estes rapazes não se preocupam com os outros, andam sempre a correr"; "matulões, levam tudo pela frente". Felizmente, nada de grave sucedera e as pessoas foram seguindo os seus caminhos.

Todo este episódio fez-me então lembrar de um outro, comentado há cerca de um mês atrás por amigos do círculo das Artes.
Pedro Deslandes embateu numa caixa alta de metal que estava mesmo a seguir à esquina que ele dobrou. Foi pressionado pelas pessoas que seguiam atrás de si a andar mais rápido, e pelas pessoas, que vinham em sentido contrário, a dobrar a esquina um pouco mais encostado para o lado direito, e foi quando o seu ombro embateu na caixa alta de metal, provavelmente de instalações eléctricas que ele sentiu o seu ombro ir para trás com o impacto. Com o diagnóstico de ruptura de ligamentos, tendo o ombro deslocado, Pedro teve de ficar com o braço afectado ligado ao peito para se manter imóvel e não se arriscar a qualquer esforço.
Deslandes era escultor, artista comissionado por galerias até noutros países, mas ultimamente não tinha apresentado novas obras; falava-se de que ele estaria com falta de inspiração e que não produzia nada há meses por ser incapaz de ultrapassar esse bloqueio.
Quando finalmente em casa, Pedro retirou as ligaduras que lhe tinham acabado de pôr no braço convalescente, porque lhe lembravam as múmias e artefactos em barro entrapados, pertencentes a uma escavação egípcia, que estiveram no museu onde trabalhou quando era mais novo.
Pediu, então, à amante da ocasião, que por conta do sucedido teria alongado a sua presença em casa dele, que lhe ligasse o braço junto ao peito com um lenço que ele mesmo lhe passou para as mãos. "Que toque tão suave", disse ela e ele respondeu apenas: " Pura seda, o melhor dos tecidos." Depois de ter feito o que Pedro lhe pediu, e quase colocando um pé do outro lado da fronteira, no território do carinho, que era tacitamente proibido entre eles, recompôs-se e disse: "Adeus, espero que melhores rápido", com um encostar de bochechas, apartou-se, e fechou a porta.
De imediato, Pedro Deslandes, pensou naquela despedida dela, em como o leve embate das suas bochechas foi para eles a despedida possível; em como há pessoas que chegam juntas, caminhando pela mesma rua, até a uma esquina e aí, só aí, cada uma delas vai à sua vida.
Porque é que as esquinas são propensas a despedidas? É porque a sua geografia exige que as pessoas sigam caminhos diversos? E por que esperam elas, depois de caminharem toda a rua juntas, para chegarem a uma esquina para se despedirem?
Pedro Deslandes era escultor e viu no seu embate numa esquina, toda uma panóplia de imagens e conceitos por explorar. Teclou notas sobre elas com a mão esquerda, no computador. Passados dias, Pedro já tinha o seu braço sarado e pôde finalmente começar a tirar partido das ideias geradas pelo infortúnio que sofrera.
Agora, criava figuras humanas, frágeis, à lembrança de Giacometti, umas gigantes e outras menos, divididas em esquinas. Todos os artistas comentavam o regresso prolífico de Pedro Deslandes às esculturas e, com sucesso. "Geniais", aflorava já a crítica, e claro, alguns não se continham e, jocosamente, ouvi falarem entre si: "qual inspiração, desloquem-me mas é o braço!", ao que alguém respondia: "vai esperar para uma esquina!".
Às vezes já me chateiam, estas coisas dos poemas, ou sei lá mais o quê, às tantas da manhã, depois de já me ter deitado há muito, forçar-me a abrir as pestanas e com olhos doridos escrevinhar minúsculas e corridas letrinhas, só porque já gritava muito alto o poema, ou sei lá mais o quê, na minha cabeça que só queria era parar e dormir como as pessoas normais.

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Hoje visitei o mundo....

Hoje visitei o mundo
e ele não estava tal qual o tinha deixado.

As pessoas pareciam produtos de supermercado,
com prazo de validade, cores garridas e consumíveis.

Pessoas-garrafas, pessoas-latas, pessoas-frascos,
todas elas embalagens em vácuo
para uma melhor conservação.

Não fui às compras. Não comi nada.
Apenas fui visitar o mundo e ele serviu-me chá,
"de camomila ou hortelã?", quente,
porque estava muito frio lá fora.

No fim do dia, visitei as cores do ocaso,
veios rosa profundo num azul que entardecia.
O meu corpo envolto num manto de lassidão
e no entanto, já não sentia mais o frio nem o quente.

Acho que à medida que calcorreava o empedrado,
naquele fim de tarde, no regresso, o tempo parou.
Eu também fiquei imóvel depois de já não sentir qualquer brisa,
e pude absorver o que me rodeava e entender que o mundo,
o mundo das pessoas agora embalagens, mudou.

sexta-feira, fevereiro 12, 2010

Dá-me o meu sangue de volta

Dá-me o meu sangue de volta.
Dá-me o meu sangue de volta!
Já não há os contos perenes da Rosa
nem os risos infantes do Viegas,
já não há as cantigas resistentes do Zeca
e dos dizeres do Ary,
nem a calmia da guitarra do Paredes. 
Dá-me o meu sangue de volta,
dá-me o ar, a respiração:
já não há a intrincada pintura da Vieira da Silva
nem os poemas crus e mansos do Cesariny.
Dá-me de novo o meu peito,
o lugar onde batia o meu coração,
pois já não há da Florbela a sofreguidão,
nem os delírios filosóficos de Pessoa.
Traz-me de volta o meu sangue,
o seu pulsar, a sua cor,
as vísceras do meu ser.
Chupa Godinho, Palma e Branco,
e transfusa Pimenta e Herberto,
pois já não há a dor de Al Berto,
mas ainda há o pranto do hugo-mãe.
Dá-me o meu sangue de volta,
dá-me o meu sangue de volta...
neste meu breve amanhecer.

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

A solidão do mar de uma folha em branco

Nunca fiquei tanto tempo a olhar para uma folha em branco, sem conseguir escrever nada nela....

É da solidão que me trai, porque não me engrandece como muitos dizem que é suposto, no seu templo edificante; mas sim diminui-me, transforma-me em nada, reduzindo-me à minha própria insignificância perante o Universo e arredores. Eu, um ser mortal, imperfeito e vulnerável, como todos os outros milhões deles neste planeta, no mínimo, estranho. Sim, as pessoas não detêm qualquer estranheza, ou mesmo mistério em si mesmas, mas sim o mundo à volta delas; aquele que por tantas vezes é esquecido, encerra paisagisticamente uma estranheza incomum. Deviam todos olhar mais vezes em todo o seu redor.
Já alguma vez tocou-te na consciência, várias vezes num dia, que estavas só? É, as pessoas verdadeiramente não o sabem. Considero uma dádiva (seja lá de quem for) sentirmo-nos em paz, em pura calma, com a certeza de que é impossível estarmos mais seguros, tendo o mundo desvanecido como se estivéssemos num plano etéreo. Penso que esta sensação global de preenchimento é capaz de surgir quando encontramos a pessoa que pensamos que vamos amar para sempre. É bem capaz.
Já faz um tempo que me demiti de mim mesma , fiz uma pausa para me tornar noutrém. Sempre vale a pena tentarmos ser condescendentes connosco mesmos. Nem se aplica apagarmo-nos ou substituirmo-nos, mas sim pegarmos noutra pessoa de dentro de nós e fazermos dela nós mesmos, por mais ou menos tempo que dure, sempre sabe bem variar. É um “Kit-Kat” que nos aplicamos.
Neste processo, podemos perder o controlo sobre aquilo que sabemos que realmente somos e, para evitar isso, há sempre o mar. Mais propriamente o mar da Ericeira. Tudo em redor dele pode-se alterar, mas ele, apesar de inconstante e de incansável, mantém-se sempre o mesmo. O mesmo cheiro envolvido em misteriosa neblina, a mesma imensidão, o mesmo poder esmagador sobre o nosso respirar, a mesma revoltada quietude de alma. As nossas vozes não alcançam o mar, mas os nossos pensamentos são telepáticos com ele.
Todo aquele mar e por vezes não me lava a alma...

sexta-feira, janeiro 29, 2010

A Festa

Monotonia, cheia de barulhos,
acompanhada por um relógio;
sorrisos insinceros, largos,
vão ecoando como estalos,
breves e ocos, de balões 
cheios de nada.

Gente frustradamente já conformada
preenche o tempo na esperança
de que ele passe e não se note
a sua existência perturbadora, 
constante,
que a todos põe ansiosos.

É algo que se demonstra intocável.

Alegria boba, que ruidosa que é,
vingada por um anjo negro e só,
numa festa entediada e vã.
Mentiras cortantes como papel,
feitas de água ímpia e esguia,
apunhalam a escrita solene
de quem se revelou cínica.

quinta-feira, janeiro 21, 2010

Estou longe de ser perfeita, mas para a imperfeita pessoa para quem sou a mais perfeita e que para mim é a perfeição em pessoa, estou definitivamente pronta para ser mais que perfeita.

terça-feira, janeiro 19, 2010

sem título

Não me consigo mexer - sou alguém congelado no tempo das feras mansas.
Vislumbro o rasgar de vinte e quatro vozes que ecoam eternamente
- a luta da vida em constante rotação.
O cheiro das pedras no meio das pétalas de enxofre... 
deliciam-me,
trepam-me às fossas nasais como se fossem pequenos homens
em cumes de montanhas tortuosas, sem oxigénio nas bolsas lacrimais.

Sou o velho ar do campo, cansado, de tanto percorrer a vastidão 
- terrenos de miséria, abandono e fel. 
Gotejam-se sombrias as histórias dos velhos na escuridão
- outrora cânticos de trigo de oiro e mel.

Não me consigo mexer - é o súbito reumático da nostalgia.
As saudades que são iguais em todas as línguas e sentem-se
assim tão sós, tão frágeis, 
como as próprias mãos das velhas do campo.

Sei que um dia voltarei àquele lugar, 
e entre árvores frondosas e leitos secos
estará a mesma velha senhora à sombra
- a mãe de todos os seres.




segunda-feira, janeiro 18, 2010

O Regresso

Esta noite regresso ao teu corpo
de onde saí há muitos dias atrás
sozinho
no meio da tempestade de breu.

Sussurro segredos na tua pele
lentamente 
deslizo para atracar no teu porto
esse meu abrigo das horas de luz.

Estarás sempre à minha espera
e quando me deito
no lugar do teu coração
floresço.

Com o seu bater de tambor manso
começa a dança do eterno conforto.

Esta noite regresso ao teu porto
como escuna que volta do mar frio
e procura o calor do teu farol a sul. 

Ergues-te uma vez mais 
e em tuas mãos adormeço
e encontro a minha paz.


segunda-feira, janeiro 11, 2010

Rasgo

A inocência tresmalhada pelo conta-gotas do mal.
A inocência que não foi, que não esteve, que nunca chegou.

Porque não podes querer nada, porque és pobre e miserável 
e a estes apenas cabe a luxúria da penúria e do abandono.  

Não ambicionas, não vês as fráguas perfumadas a carmim 
- o desejo.

Hoje és poalha nas digitais de um vagabundo
e habitas o asco com que todos o olham.

Não foste parido pela educação do estóico,
nem por outra qualquer. Apenas largado.

Ninguém te ensinou a querer. 
Houvesse quem te tivesse tido amor
e talvez conhecesses a irmã da chama 
que habita nos seres completos,
nos que não foram abandonados.

Mas tu és apenas inexistente,
como as flores invisíveis do mal.